Durante semanas, chegava a casa cansado de mais um dia de trabalho, sentava-me ao computador, ligava a televisão e (as)saltava-me à vista a fotografia de António de Oliveira Salazar. “Déspota ou iluminado?” era a frase que acompanhava um dos retratos mais vistos e dados a ver pelos portugueses.
Hoje, continuo a minha rotina de trabalhador-estudante e estudante-trabalhador e não abdico das funções do meu polegar. A pequena caixa mágica continua a transmitir som e imagem ao meu quarto. Porém, a pergunta que me invadira há poucos dias continua sem resposta. Quer esta sobre Salazar, quer tantas outras sobre os restantes nove finalistas do concurso da RTP “Grandes Portugueses”.
A votação está concluída e o vencedor é Salazar, com 41% dos votos. Sinceramente, o resultado não me espanta em nada. E talvez peque por não ter atingido a maioria absoluta. Penso que esta escolha não reflecte o que o povo quer ou deseja (regresso de Salazar). Se, por um lado, votaram “apenas” cerca de 160 mil pessoas, por outro, quem votou não pertence (um mero palpite) às novas gerações. Sentados num banco de jardim, os mais velhos balançam entre as migalhas dos pombos e a organização meticulosa das suas peças de dominó. Outras migalhas enchem os bolsos vazios reflectidos nas palavras saudosas de um regresso ao passado “No tempo do Salazar é que era bom”. São estas palavras que saem das bocas enrugadas dos avós que são dirigidas aos mais pequenos comandados por ipods e playstations.
Mas o que verdadeiramente me espanta é o elevado grau de inteligência que os criadores deste programa tiveram para o transformar num concurso. De facto, nada melhor que pegar no nosso país (Portugal, Inglaterra, Itália, ou outro), cortar ao meio, espremer bem, abanar um bocadinho e verter para um copo para ser bebido como um simples sumo de laranja. Realmente, não se poderia pedir muito mais de um público que já há muito tempo que anda habituado a outros frutos e flores… Com ou sem açúcar, os olhos colados na televisão são cada vez mais e a massa cinzenta cada vez menos.
Dar a conhecer ao público as obras, feitos e conquistas dos portugueses que, de certa forma, foram importantes para o país é, sem dúvida, uma iniciativa a aplaudir. Decerto que grande parte dos portugueses nunca sequer teria ouvido falar em muitos dos finalistas do concurso. Ou, se o ouviram, entrou e saiu da cabeça à velocidade da luz. E é mesmo isso que falta a muitos portugueses, luz. Num mundo cada vez mais iluminado pelas novas tecnologias e pela imprescindível rapidez de pensamento e acção, o verdadeiro pensar e o conhecer tendem a ser esquecidos por aqueles que não têm os coletes de salvamento.
Escolher entre Salazar e Álvaro Cunhal, Fernando Pessoa e Camões, D. Afonso Henriques e D. João II é uma afronta à História de qualquer país, particularmente a um dos países mais antigos do Mundo como é o nosso. Conceder determinados atributos a cada “concorrente” (sim, Vasco da Gama e Aristides de Sousa Mendes são concorrentes!) é um acto estupidamente leviano para definir as suas personalidades. Como num simples jogo de computador, coloco os jogadores nas suas posições conforme as suas qualidades (Fernando Pessoa tem 8,6 de génio, talvez o coloque a nº10; o Marquês de Pombal fica atrás para organizar a defesa; já o Salazar tem 8,7 de liderança, será ele a enveredar a braçadeira de capitão). E é neste barco de frágeis tábuas de madeira que abandonamos a costa rumo à “evolução” com o objectivo maior de dar “novos mundos ao mundo”.
Qualquer um dos portugueses, conhecido ou mero anónimo teve, tem e continuará a ter um papel fulcral na História do nosso país. Como é óbvio, não discordo da existência de personalidades que, por tudo o que fizeram e pela sua visibilidade, foram transformadas em verdadeiros ícones mediáticos. Mas mesmo dentro desses, cada um foi dotado de defeitos e virtudes, vitórias e derrotas. É, portanto, na minha humilde opinião, coroar um único como o Grande Português, uma impossibilidade histórica e vertiginosamente perigosa para todo o público deste programa, que somos todos nós.
Talvez as crianças, dentro de uns anos, rejeitem ler “Os Lusíadas” (já não rejeitam?) pois foi criado por um simples homem que ficou num modesto quinto lugar… Ou, por outro lado, decidam estudar economia para serem Ministros das Finanças… Visto desse prisma, talvez nem fosse má ideia. Mas isso já são contas de outro rosário. Contas de somar, subtrair, multiplicar, dividir… Dividir tal como aconteceu em 1494, dum lado Portugal, do outro Castela. Hoje, o Tratado de Tordesilhas adaptou-se à mentalidade portuguesa e cada vez mais o fosso entre ambos os blocos é maior. A informação, é certo, aumentou drasticamente nos últimos anos e o acesso a ela também. Contudo, o conhecimento está tão longe para muitos como estava a Índia para o Vasco da Gama. Muitos de nós continuam a ser tristes empregados de escritório, que falam para si mesmos através da invenção. Outros vivem euforicamente felizes, cantando ao mundo a sua envernizada sabedoria.
Precisamos, talvez, de um Alberto Caeiro para guardar toda esta homogeneidade rebânica que pasta lentamente o que lhe vem à boca.
A cadeira caiu mas, para muitos, ergueu-se orgulhosamente a voz de Salazar.
Hoje, continuo a minha rotina de trabalhador-estudante e estudante-trabalhador e não abdico das funções do meu polegar. A pequena caixa mágica continua a transmitir som e imagem ao meu quarto. Porém, a pergunta que me invadira há poucos dias continua sem resposta. Quer esta sobre Salazar, quer tantas outras sobre os restantes nove finalistas do concurso da RTP “Grandes Portugueses”.
A votação está concluída e o vencedor é Salazar, com 41% dos votos. Sinceramente, o resultado não me espanta em nada. E talvez peque por não ter atingido a maioria absoluta. Penso que esta escolha não reflecte o que o povo quer ou deseja (regresso de Salazar). Se, por um lado, votaram “apenas” cerca de 160 mil pessoas, por outro, quem votou não pertence (um mero palpite) às novas gerações. Sentados num banco de jardim, os mais velhos balançam entre as migalhas dos pombos e a organização meticulosa das suas peças de dominó. Outras migalhas enchem os bolsos vazios reflectidos nas palavras saudosas de um regresso ao passado “No tempo do Salazar é que era bom”. São estas palavras que saem das bocas enrugadas dos avós que são dirigidas aos mais pequenos comandados por ipods e playstations.
Mas o que verdadeiramente me espanta é o elevado grau de inteligência que os criadores deste programa tiveram para o transformar num concurso. De facto, nada melhor que pegar no nosso país (Portugal, Inglaterra, Itália, ou outro), cortar ao meio, espremer bem, abanar um bocadinho e verter para um copo para ser bebido como um simples sumo de laranja. Realmente, não se poderia pedir muito mais de um público que já há muito tempo que anda habituado a outros frutos e flores… Com ou sem açúcar, os olhos colados na televisão são cada vez mais e a massa cinzenta cada vez menos.
Dar a conhecer ao público as obras, feitos e conquistas dos portugueses que, de certa forma, foram importantes para o país é, sem dúvida, uma iniciativa a aplaudir. Decerto que grande parte dos portugueses nunca sequer teria ouvido falar em muitos dos finalistas do concurso. Ou, se o ouviram, entrou e saiu da cabeça à velocidade da luz. E é mesmo isso que falta a muitos portugueses, luz. Num mundo cada vez mais iluminado pelas novas tecnologias e pela imprescindível rapidez de pensamento e acção, o verdadeiro pensar e o conhecer tendem a ser esquecidos por aqueles que não têm os coletes de salvamento.
Escolher entre Salazar e Álvaro Cunhal, Fernando Pessoa e Camões, D. Afonso Henriques e D. João II é uma afronta à História de qualquer país, particularmente a um dos países mais antigos do Mundo como é o nosso. Conceder determinados atributos a cada “concorrente” (sim, Vasco da Gama e Aristides de Sousa Mendes são concorrentes!) é um acto estupidamente leviano para definir as suas personalidades. Como num simples jogo de computador, coloco os jogadores nas suas posições conforme as suas qualidades (Fernando Pessoa tem 8,6 de génio, talvez o coloque a nº10; o Marquês de Pombal fica atrás para organizar a defesa; já o Salazar tem 8,7 de liderança, será ele a enveredar a braçadeira de capitão). E é neste barco de frágeis tábuas de madeira que abandonamos a costa rumo à “evolução” com o objectivo maior de dar “novos mundos ao mundo”.
Qualquer um dos portugueses, conhecido ou mero anónimo teve, tem e continuará a ter um papel fulcral na História do nosso país. Como é óbvio, não discordo da existência de personalidades que, por tudo o que fizeram e pela sua visibilidade, foram transformadas em verdadeiros ícones mediáticos. Mas mesmo dentro desses, cada um foi dotado de defeitos e virtudes, vitórias e derrotas. É, portanto, na minha humilde opinião, coroar um único como o Grande Português, uma impossibilidade histórica e vertiginosamente perigosa para todo o público deste programa, que somos todos nós.
Talvez as crianças, dentro de uns anos, rejeitem ler “Os Lusíadas” (já não rejeitam?) pois foi criado por um simples homem que ficou num modesto quinto lugar… Ou, por outro lado, decidam estudar economia para serem Ministros das Finanças… Visto desse prisma, talvez nem fosse má ideia. Mas isso já são contas de outro rosário. Contas de somar, subtrair, multiplicar, dividir… Dividir tal como aconteceu em 1494, dum lado Portugal, do outro Castela. Hoje, o Tratado de Tordesilhas adaptou-se à mentalidade portuguesa e cada vez mais o fosso entre ambos os blocos é maior. A informação, é certo, aumentou drasticamente nos últimos anos e o acesso a ela também. Contudo, o conhecimento está tão longe para muitos como estava a Índia para o Vasco da Gama. Muitos de nós continuam a ser tristes empregados de escritório, que falam para si mesmos através da invenção. Outros vivem euforicamente felizes, cantando ao mundo a sua envernizada sabedoria.
Precisamos, talvez, de um Alberto Caeiro para guardar toda esta homogeneidade rebânica que pasta lentamente o que lhe vem à boca.
A cadeira caiu mas, para muitos, ergueu-se orgulhosamente a voz de Salazar.
André Pereira
Fotografia: Luís Gomes