sexta-feira, 18 de novembro de 2005

O factor Deus

Como primeiro "texto oficial" escolhi o seguinte, uma vez que o considero verdadeiro e, essencialmente, real! A notar que este artigo definido "o" diz respeito ao texto e não a outro qualquer ser imaginário criado pela mente humana. Penso que já notaram as minhas razões para colocar este texto, assim como a tal "polémica" prometida. Espero, sinceramente, que a crítica se faça ouvir, ou melhor, ler.
Por José Saramago
Terça-feira, 18 de Setembro de 2001

Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá "ver" cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes. Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro. Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras. Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova Iorque. Dois aviões comerciais norte-americanos, sequestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico, lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo. Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.

As fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à cara, as vítimas são-nos mostradas no próprio instante de tortura, da agónica expectativa, da morte ignóbil. Em Nova Iorque tudo pareceu irreal ao princípio, episódio repetido e sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, mas limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados, de merda. O horror, agachado como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefacção para nos saltar à garganta. O horror disse pela primeira vez "aqui estou" quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdómen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietname cozido a napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atómicas que arrasaram e calcinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazis a vomitar cinzas, daqueles camiões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta dos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas, sem excepção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como os outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os taliban, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactado entre a Religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.

E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gémeas de Nova Iorque, e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela acção dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da História. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o "factor Deus", esse, está presente na vida como se efectivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o "factor Deus" o que se exibe nas notas de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos, não a outra...) a bênção divina. E foi o "factor Deus" em que o deus islâmico se transformou que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o "factor Deus", esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.

Ao leitor crente (de qualquer crença...) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiram, não peço que se passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento se não puder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do "factor Deus". Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.

Escritor, Prémio Nobel da Literatura

3 comentários:

Pedrito07 disse...

Heys André!! Parabens pelo blog!!
Quanto aqui ao texto, confesso que não sou grande fã do Saramago,ao contrário aqui dos meus "amigos" espanhóis que não há livraria que não tenha um livro dele!! Assim parece-me que o ateísmo começa a estar um pouco na moda assim como ser Bloquista (Bloco de Esquerda)!! Concordo perfeitamente quando ao "factor Deus" embora me pareça que só se faça notar mais em casos religiosos extremistas e ortodoxos como é o caso do conflito do médio-oriente!!A verdade é que existem religiões onde esse "factor Deus" se faz notar mais! Por exemplo a religião muçulmana é por natureza bastante conflituosa, sendo levada a extremos completamente surreais e contra natura!!Isto pode parecer um comentario xenófobo e racista no entanto penso que concordarás comigo não...??? Assim parece-me que a religião não cria por si só uma guerra, o que provoca a guerra são os extremistas e fanáticos!! Alías o extremismo e fanatismo é um dos grandes males do mundo...

Anónimo disse...

Mais um texto «problemático»! Concordo quando dizes que já se matou, já se fizeram coisas horríveis por Deus; que Deus já foi a justificação para muitos males, e cenas horrendas. No entanto, discordo que o «factor Deus» seja assim tão linear como o proclamaste... talvez por ter feito a catequese completa, ou talvez por ambicionar a perfeição, «esse» factor de que tanto falas, reveste-se(??!) em mim de forma antagónica à que proclamas. Para mim o «factor Deus» é em tudo diferente: é algo que nos motiva a ser melhores no dia-a-dia, a ajudar, a «Amar o próximo»...é algo altruísta, e por isso, utópico... E penso que devido a esta mesma utopia, esta impossibilidade de realizar o bem de forma constante e completa, se criou o negativo do «factor Deus»... E eu pergunto: em que consiste isso? Simplesmente na burrice e tristeza humana, que para justificar actos insanos, ridículos, aponta para algo maior...e é aqui que acho que cometes o teu grande erro: o da generalização, acreditando que tudo quanto é feito é em nome Dele, ou que Deus foi criado com este intento... Quanto a mim, isso está errado, e esse factor foi usado e abusado, por nós, seres humanos, para atingir limites que não se julgavam possíveis...e quando falo em proclamar o bem, não espero um Paraíso; tão só, a felicidade dos outros, e sobretudo, o não desculpar atitudes nossas com factos alheios, algo característico ao egocentrismo humano... Portanto, acreditando que Deus não existe, será que o «factor Deus» existe mesmo? Ou não será mais uma grande fachada dos humanos, que se sentirão ridículos a serem «bonzinhos», ou culpados a serem «mauzinhos» ?

Ivan disse...

Quantas vezes na vida dizemos faz-me falta.. para mim o fazer falta algo reporta a uma necessidade ou precisar correcto?
Se Deus a mim me faz falta é porque o sinto, mesmo quando vejo determinadas situações que me arrepiam a”espinha”…
O homem se criou a palavra/conceito Deus para tornar mais tranquila a nossa passagem por aqui, melhor, porque se as coisas boas acontecem pela mão do homem e as coisas más também, onde nos podemos agarrar para explicar o inconcebível?
Acho que a presença de Deus tem uma razão forte, chama-se necessidade de crer, faz falta, educa, estimula! È a maturação do Ser Humano!
Meu amigo André eu não acredito em bruxas mas que as há, há!
Abraço forte e jovial