terça-feira, 12 de junho de 2007

Vapores de álcool

Mesmo sem pianos para consertar, havia manhãs e tarde em que entrava no cemitério de pianos para ficar sozinho. Eram manhãs em que, verão ou Inverno, a janela era sempre atravessada pela mesma luz, o mesmo tom acastanhado, sujo. Na véspera, podia ter passado horas na taberna, podia ter brigado com a minha mulher. Lentamente, passavam-me fios da noite anterior pela cabeça: vapores de álcool que se dissolviam, palavras ou imagens da minha mulher que surgiam de repente. Eram tardes em que me arrependia, em que desistia por instantes, mas em que, de repente, logo a seguir, acreditava com toda a força que seria capaz de mudar tudo. E olhava para os pianos, e pensava.

José Luís Peixoto
Cemitério de Pianos

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