A morte saiu à rua
Este texto começa pelo fim. Não na tentativa de implementar uma nova forma de escrita, mas sim por se iniciar com um pequeno parágrafo sobre a morte. Aliás, não só as primeiras linhas nos atiram para o “pensamento final” como todo o texto que, desta forma, pretende elucidar as pessoas sobre este tema tão antigo quanto controverso. Muitos de nós imaginamo-la como um vulto sem rosto, vestido de negro e com uma foice afiada pelo constante uso da lâmina. Outros, vêm-na como uma ponte para outro mundo onde seremos julgados e, conforme a nossa conduta terrestre, enviados para o Inferno ou para o Paraíso.
Muitos foram aqueles que dedicaram grande parte das suas obras à Morte, como Schopenhauer, Nietzsche, Platão, entre outros, através de perspectivas mais pessimistas até outras que a encaram como uma libertação.
Biologicamente, a morte pode ocorrer para o todo, para parte do todo ou para ambos. Por exemplo, o organismo pode continuar a funcionar após a morte de células individuais ou até mesmo de órgãos. Muitas destas células têm pouco tempo de vida, e a maior parte é continuamente substituída por novas.
Esta constante renovação de células não permite, porém, o rejuvenescimento do corpo em si. A irreversibilidade da morte é a única certeza que o ser humano possui. E, quando o momento se aproxima, há quem o viva de forma angustiante ou, por contrário, de forma serena.
Neste campo, a Medicina tem tido um papel bastante importante. Surgem-nos questões como a Eutanásia, a Ortotanásia e até mesmo o Aborto.
A palavra Eutanásia vem do grego “Eu”, que significa “Boa”, e “Tanathos”, equivalente a “Morte”. Sendo assim, Eutanásia tem na sua raiz a expressão “Boa morte”. Este termo, no entanto, refere-se ao acto de tirar a vida de outra pessoa por solicitação dela, com o propósito de acabar com o seu sofrimento.
Já a Ortotanásia consiste num método que autoriza os médicos a suspender os tratamentos que mantêm artificialmente a vida de doentes terminais, quando estes o desejarem. É importante, neste caso, distinguir Ortotanásia de Eutanásia Passiva, na medida em que na primeira não são levadas a cabo quaisquer medidas que visem manter ou melhorar o estado de saúde do doente. Já na segunda estas são tomadas e interrompidas num determinado momento da sua vida.
O Aborto, por seu lado, consiste numa interrupção voluntária ou involuntária da gravidez, impedindo a sobrevivência do feto.
Há quem defenda o direito à morte com dignidade e há quem entenda que não cabe aos homens pôr termo à vida. Quer a nível pessoal quer profissional, na abordagem do “direito” de escolha pela morte ocorrem conflitos de interesses e opiniões diferentes, fundamentadas pelo percurso de vida e por componentes biológicas, psico-afectivas, sociais, económicas e culturais que caracterizam cada um de nós.
A questão da Eutanásia tem trazido para debate público aspectos importantes: pessoais, científicos, educacionais, religiosos, sociais e económicos. Todos devem ser cuidadosamente aprofundados uma vez que aqui sim, trata-se de uma questão de vida ou de morte.
Luís Abreu, médico obstetra, afirma que “este é uma tema que, mais tarde ou mais cedo, todos vamos ter de debater”. Questionado sobre as questões morais e deontológicas da sua profissão, “enquanto médico não concordo de forma alguma com a eutanásia. Da mesma forma que não concordo com a suspensão de um tratamento por motivos económicos. Enquanto médicos, devemos diminuir o sofrimento das pessoas e proporcionar-lhes uma morte digna e sem sofrimento”.
Já Agostinho Almeida Santos, presidente do Conselho de Administração (CA) dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) reconhece que a aplicação da Ortotanásia “não pode ser ética nem deontologicamente condenável, uma vez que um médico pode abster-se de medidas terapêuticas que, por vezes, são elas próprias condenáveis”.
“É preciso re-socializar a morte”
Se, nos últimos tempos, a questão da Eutanásia e do Aborto tem invadido as nossas mentes através do mediatismo causado pelos meios de comunicação social, não nos podemos abstrair da Ortotanásia.
Agostinho Almeida Santos reconhece que “o termo não é muito apelativo às pessoas”. Contudo, é uma questão que deve ser debatida no seio da sociedade portuguesa. “É preciso re-socializar a morte”, assegura o presidente do CA.
“A pessoa que, nos momentos finais da sua vida, é rodeada de afecto e carinho pelos profissionais de saúde e pela família, é um ser que vai morrer tranquilo, sem angústias e sem a agonia da morte – antigamente as pessoas morriam em casa e não num espaço tão impessoal como é o hospital”, continua.
Questionado acerca da prática da Ortotanásia ou Eutanásia em recém-nascidos com poucas ou nenhumas hipóteses de sobrevivência, Luís Abreu responde prontamente: “Se nasce vivo, a nossa obrigação é a de manter a vida”.
A poucos dias do referendo sobre a despenalização do aborto, ainda muitas questões se colocam em bicos dos pés nas cabeças das pessoas. Será condenável provocar a morte de um feto que se sabe que vai sair com malformações graves?
Admitindo a dificuldade e sensibilidade da questão, Agostinho Almeida Santos entende que “as malformações cardíacas graves podem ser tratadas através da intervenção cirúrgica”.
“A situação é completamente diferente se a malformação que o feto apresenta é incompatível com a vida, e esse é o caso frequente. Por exemplo, um feto que não tem cérebro (anencefalia), ele vive, está no ventre materno, mas quando vier para o exterior não terá possibilidades de viver”, assegura.
O médico obstetra Luís Abreu considera a morte provocada uma situação claramente diferente do aborto de um feto que vai sair com malformações graves. “O aborto de um feto é a antecipação de um sofrimento de uma vida que, sendo uma vida, não tem a outra carga que nos faz pessoas – a sociedade, a aprendizagem, a relação com os outros. Nós somos uma soma de tudo o que aprendemos ao longo do nosso percurso social”.
Tendo em conta as condições hospitalares para “receber tratamentos abortivos”, estes dois médicos são unânimes na incerteza.