domingo, 31 de agosto de 2008

Voltar


Voltar. A própria palavra transmite uma sensação de viagem, de vazio, de mergulhar até ao fundo do poço e regressar à tona em menos dez segundos. Levantar a cabeça, passar os dedos pelos olhos, esfregar o nariz e puxar o cabelo para trás. Lufada de ar fresco. Ar puro novamente. O “v” tem a forma de vale, de escorregar, cair, e saltar rapidamente rumo às estrelas. Tal e qual um adolescente numa pista de skate, mas sem capacete nem qualquer outro tipo de protecção. Só uma mera tábua de madeira com umas rodas desengonçadas, como os carrinhos de rolamentos na descida em frente à minha casa. Inconstante, difícil, perigoso. Cai-se, esmurram-se os joelhos, atira-se terra para estancar o sangue, e está tudo óptimo. Volta-se.

Voltar é uma descarga eléctrica que nos escorrega pelo peito, desce até à barriga e sobe novamente a alta velocidade, dando-nos um valente murro nos queixos. Daí a palavra ser um “volt” com “ar”, a tal lufada de oxigénio que nos sopra na cara. Fechamos os olhos, os cabelos voam e sentimo-nos o Joker no carro da polícia de Gotham City. Mesmo com as cicatrizes, aquelas pedras que se metem nas rodas do nosso carrinho, aquelas memórias que nos fazem adiar o regresso. Adiar o “voltar”. Mas voltamos, sempre! Há sempre um regresso, com ou sem autorização, acabamos por voltar ao nosso baloiço, à nossa escola, ao campo de futebol que substituía as aulas de Físico-Química… Voltamos.

A forma mais corriqueira e mais incorrecta de voltar é camuflada por letras macias, leves… Lembrar. Lembrar é voltar sem “v”, é regressar em pezinhos de lã. É pedir licença para entrar, tirar os sapatos, calçar umas pantufas e andar como o Bugs Bunny quando se quer esconder do caçador. Ao lembrarmos, estamos a exercitar a nossa memória, é certo, mas estamos a estragar o nosso coração. É bom lembrar, faz bem, mas dói e não se recomenda. Por muito que as memórias sejam boas. Obrigam-nos a ir às nossas gavetas mentais, forçar a entrada, não encontrar a chave, procurá-la debaixo dos tapetes, metê-la na fechadura, não dar e ter de arranjar uma outra forma para arrombar a maldita gaveta. Voltar é uma lembrança em presença. Não precisamos de procurar a chave porque, quando voltamos temos comando, carregamos no botão e o portão abre-se automaticamente. Não saímos do carro, mesmo que esteja a chover. E é tão bom, não nos molhamos, mesmo que a chuva saiba a sal.

Voltar é dar um par de estalos à memória e fazê-la acordar. Nunca se volta fisicamente através de lembranças. Por isso estão disfarçadas. E escrevem-se com “l”, de “lamechas”, de “lulu”, de “lápis”… Pegamos numa borracha e lá se vão as lembranças. Por isso voltemos! É bom voltar aos sítios onde demos o nosso primeiro beijo, àqueles onde passámos a maior vergonha da nossa vida… Voltar é cheirar, é agarrar, é trincar! Lembrar é todo um malabarismo mental para criar o que já existe. Lembrar é construir um castelo de cartas no topo de um arranha-céus. Voltar é construir as cartas. E o arranha-céus. A memória atraiçoa. Dá-nos uma facada nas costas. O regresso dá-nos vida, ou mata-nos. Pisamos o chão e estamos, somos, existimos. A lembrança imagina, probabiliza, supõe. E Portugal precisa de voltar. Não àquilo que foi, mas àquilo que teve. Não no sentido de recuperar territórios físicos, mas sim de conhecer as pedras que pisou. Voltar onde esteve, onde não esteve, inventar novos mundos, novos regressos, novas viagens. Ir, regressar, viver e voltar. Lembrar não, dói. Voltar sim, dói ainda mais. Talvez seja por isso que agora não me lembro de mais nada para escrever.

3 comentários:

Anónimo disse...

ADOREI! Mas eu tambem sou suspeita pk adoro tudo o que escreves!! Gosto da forma como aprofundaste as palavras voltar e lembrar... É isso: conseguiste falar delas com todos os detalhes e ... tens razao em tudo o k escreveste!!!
Gosto da forma como misturas razão e emoção. Dá um resultado fantástico!!
ADOREI ADOREI!!!

Beijinhux***

Strange marshmallow disse...

"O regresso dá-nos vida, ou mata-nos."
Mesmo que o regresso te dê vida, dá-ta apenas para te matar a seguir.

Porque quando dás "esse par de estalos à memória para a fazer a acordar" estás a despertar aquilo que em primeiro lugar te fez partir. E se o que deixaste foi algo de bom o teu regresso implicará passares pela fase dolorosa de a teres que deixar de novo e voltares de onde regressaste.
Por outro lado, se for algo de mau, a tua volta implicará a recordação de tudo aquilo de mau que se passou.

Sabes que Alberto Caeiro falava assim da estrada dele. Receava o passado porque na verdade nunca se pode trazer nada de bom quando lá se volta, volta e meia. Nem que seja por ter sido demasiado bom.

Ainda assim, fez-me dar voltas a muita coisa e foram voltas que valeram a pena terem voltado. *

pedro disse...

Voltamos sempre. Ao que queremos mas sobretudo ao que nao queremos. Os erros que fazemos sao sempre os mesmos. Mudam os cenarios, os actores e os figurantes, mas o final do enredo e sempre o mesmo. Voltamos sempre.

O que vale e que damos a volta por cima, eventualmente.

Um abraco,

p